Quando arreguei numa ciclotrip

 

Pouca gente sabe, mas eu, Mudinho, em setembro de 2013, tive uma tentativa frustrada de uma cicloviagem.
Desde já, peço licença aos amigos do bando para narrar em primeira pessoa. Até porquê, foi minha primeira tentativa solo de algo do tipo e foi uma frustração minha em particular.
Vamos lá ao causo.

Lá naquela época, tinha traçado um caminho “por dentro” que saía de Brasília e chegava até Goiânia. Estava já querendo fazer há algum tempo. Procurei amigos para me acompanharem mas todos estavam ocupados e corridos naqueles tempos.
Daí bateu a ideia de fazê-la sozinho.
Na época, estava honrando bem meus treinos para competição e tinha a certeza de que conseguiria fazer sozinho (anotem isso). Do jeito seriema de cicloviagem: offroad e autônomo.
Passei algumas semanas preparando toda a tralha. Até porquê, como eu ia sozinho, precisava de carregar toda a tralha (incluindo peças sobressalentes) comigo. Sem dividir com ninguém o peso.
Se na nossa viagem de São Jorge a bike estava com cerca de 40kg (sem os alimentos), nesta eu imagino que deveria estar com 50kg. O caminho era em sua grande parte, novo e não conheci ninguém que tivesse tentado fazê-lo. Pelas minhas contas, ele todo daria cerca de 300km.
Orgulhosamente, continuei focando no meu preparo físico da época. Pelo que via do caminho, seria mamão com açúcar fazê-lo em dois dias.
Chegou o grande dia. Claro que, como sempre, não dormi nada durante a noite na pilha. O destino do meu primeiro dia era uma cidade chamada Abadiânia Velha, que poucas pessoas conhecem.
Se trata da cidade “original” de Abadiânia, que acabou esquecida no tempo, depois que fizeram a rodovia que liga Brasília a Goiânia e a nova cidade de estabeleceu. O início do caminho percorreria uma estrada conhecida que já havia feito algumas vezes no caminho offroad a Pirenópolis.
Tomei um bom café da manhã e saí valente. Com muita confiança, segui adiante, sentei a botina no início de asfalto. Foco no corpo, que de fato, estava bem preparado. Afinal de contas, estava afiado para as competições.
Passo o primeiro vilarejo (Cidade Eclética). Depois Aparecida de Loyola. E depois Olhos Dágua. Até ali, estava com cerca de 100km rodados. De uma forma bem firme e constante. Mas com o peso natural da bicicleta, já comecei a sentir um pouco as pernas.
Havia calculado previamente uma média quase surreal de ter sido feita. E chegar em Olhos dágua com uma média bem abaixo já fez meu ego dar uma rateada. Estava pelo menos duas horas “atrasado” (anotem).
Até ali, pouco me importava o caminho. Minha gana de chegar ao primeiro destino era muito maior. Tanto é que fiz pouquíssimas fotografias (coisa que sempre faço demais em toda e qualquer cicloviagem). Só tinha olhos pro guidão, pras minhas pernas e pros batimentos cardíacos do relógio. Nada mais. Batimentos, inclusive, que nestes 100km já se demonstravam um tanto acima do “normal”. Demonstrando que o corpo já estava sentindo o desgaste. Continuei fazendo força. Muita. Afinal, estava com o corpo bem preparado.
 
Assim que passa olhos dágua, (que eu já conhecia), iniciava-se um pedaço novo do caminho. Que anda por um grande vale cheio de montanhas, cortadas pelo Rio Corumbá.
Eu sabia que seria duro durante o planejamento da viagem. Mas resolvi ignorar os instintos. Confiei tão somente nas minhas pernas.
E sobe e desce montanha. Agora, já 3 horas “atrasado”.
Nuvens muito escuras começaram a se formar.
Cheguei ao pé de uma subida inacreditavelmente grande.
Pisei pela primeira vez no chão. E comecei a empurrar.
Meu ego foi abaixo.
No caminho totalmente inverso, estavam meus batimentos. Altíssimos
Começou a me dar uma certa suadeira fria. E mal estar.
Foco no relógio. Foco nas dores das pernas. Foco no GPS que demonstrava o horário atrasado. Foco na bicicleta pesadíssima. Foco em um tamanduá morto na estrada. Foco no terreno solto que não deixava eu subir a média horária. Foco na chuva que se armava. Foco nas autocríticas e exigências absurdas que eu havia colocado para eu mesmo.
Depois de mais 3 subidas dessa, lá pelas 5 da tarde, encostei a bicicleta.
Sentei.
Respirei.
Comi alguma besteira (com bastante dificuldade).
Fiz aquele breve pensamento que todo ciclista um dia faz: “o que estou fazendo aqui?”
Na minha avaliação, não chegaria até o destino planejado para aquele dia. E se chegasse, seria arrastando e muito tarde da noite.
Nada mais pareceu fazer sentido.
Tudo doía e estava excessivamente desconfortável.
Tive que admitir para mim: HOJE, eu não vou conseguir.
Quem é Seriema de verdade, sabe o quão difícil é a gente chegar a admitir isso em meio a uma cicloviagem. Fiquei um bom tempo em uma guerra interna entre a responsabilidade de ficar bem e de seguir adiante no desafio.
E desisti.
Refiz meu caminho até a beira da rodovia e chamei resgate.
Neste breve caminho, tive que lidar com os meus monstros internos.
O da crítica excessiva.
O da exigência com metas descabidas.
O da decepção comigo mesmo.
Estava claro que nesta trip, o foco foi eu. Meu ego e uma forma de tentar (em vão) provar pra mim que eu era capaz. E de tantos “eus”, esqueci de levantar a cabeça. E olhar. E aproveitar o que estava ali entregue de bandeja.
Esperei num boteco o resgate tomando uma gelada bastante inconsolável. Mesmo o senhorzinho que me atendeu estando aberto a uma boa prosa, acabei me calando. Refletindo.
Voltei pra casa me sentindo um total derrotado.
E passei o restante dos dias refletindo.
Até que, depois de muito pensar, me veio a grande lição.
Que é óbvia.
Que a gente ouve sempre e acaba ignorando, achando que é besteira.
E que escrevo:
“Numa viagem, o que importa é o caminho. E não o destino.”
Nada mais SERIEMA do que ela.
Cicloviagem nenhuma acaba só com preparo físico. Mente e corpo trabalham juntos. Na verdade, bem mais MENTE do que corpo.
E foi aí justamente meu erro. Fui achando que era treino. Quando na verdade, era cicloviagem. E, no jeito Seriema de ser, tinha que ter feito uma cicloviagem.
Acabou que, de fato, fiz uma viagem interior muito forte e que fez eu me conhecer muito mais. O que, por si só, já fez valer todo aquele dia. Mesmo com a desistência.
Acabou que, um tempo depois, meu brother Will e eu acabamos completando o caminho em três dias. Sem stress. Curtição a mil. Parando em tudo quanto é birosca. Rindo e curtindo cada pedaço do caminho. E, aí sim, foi uma das melhores. (Se quiser ver este rolê, clique aqui)
E que venham novos desafios!!! Sejam eles quais forem!!